A rotina, às vezes, não nos deixa meditar sobre a natureza de nossos trabalhos. Estava fazendo as contas de quantas pessoas perdemos do ano passado pra cá. Foram pais, mães, avós, irmãos e amigos... Não consegui mais ter a certeza depois do número quatorze. E estávamos nos mantendo tão longe, então outras coisas também os alcançaram. Ao somar os que se foram infectados, os pais e irmãos de meus colegas e amigos e alguns colegas, a ficha caiu como quando você percebe um carro prestes a te atropelar.
Passo algumas noites em claro às vezes. Não consigo confiar no que vejo na TV, pois pra mim os números tem nomes. E a doença é tão lucrativa para quem só sabe contar. O medo é a maior fonte de lucro que a humanidade poderia se apropriar. Há ausências em muitas casas conhecidas e isso faz tanta falta no dia a dia no trabalho e depois que estou em casa... Não tinha parado para pensar por talvez não querer sentir, mas foi como tentar curar uma ferida apenas botando a mão no lugar de onde o sangue está saindo!
Não conseguia parar de questionar as chances de ter levado o mal para muitos deles quando nos procuravam, mesmo com todos os cuidados, mesmo sem apresentar sintomas. No dia a dia falamos para esquecermos, que o risco é a natureza de nosso trabalho nessas ocasiões e que seria pior se não estivéssemos ali. Muitos de nós também não caímos? Alguns para nunca mais... Era uma guerra desde o inicio, e de que serviram os pacifistas se não nos deixaram enxergar?
De um ano pra cá eu tenho dormido mal às vezes, e tenho me privado de algumas coisas para que pessoas não se percam. Mas agora tudo isso pareceu tão inútil que senti vergonha por não ter chorado essas dores antes. Por não ter lutado com todas as armas disponíveis. Agora é tão fácil entender que não adianta ter um lugar para voltar se as pessoas que iluminavam esse lugar não estão mais lá. Virei um robô de um ano pra cá e não consegui enxergar até os faróis inundarem minha retina.
Pensar que filtrar as informações e agir com base nisso numa passividade inexplicável nos livraria do mal foi uma ilusão. Nós protegemos as portas e as janelas para depois olharmos atônitos a inundação solapar os alicerces por outros motivos também. A casa está de pé, mas qualquer vento balança toda lagrima agora. Que peso maldito! Que escolha furada ser um pacifista em um mundo em guerra! A punição para esses será pior. Lidar com as ausências já é...
Nós que estamos aqui vamos fazer a única coisa digna que nos resta que é reerguer espíritos e humanidade. Para os que foram sem despedidas dignas, vão em paz! Que o Criador os receba em Seu seio e nos perdoe por nos curvarmos tão fácil ao mal e às ameaças.
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