quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O sol sobre a pele

 

(Imagem: Acervo pessoal)

Hoje saí para filmar e fotografar a cidade. Deu na telha. Havia muito tempo que não fazia isso. Tinha duas horas para o banho, almoço e retorno ao expediente. O almoço ficou para o outro dia. Às horas que me caíram permitiram ver um fluxo após o rush que, tinha esquecido, me causa um certo conforto. O fluxo após os jovens e adultos já estarem em seus trabalhos e estudos. Apenas pessoas perdidas como eu no caminho. Os ônibus vazios. O sol sobre as nossas peles. É como estar na sala de casa.

Eu mirava para todos os lugares, pois queria ter aqueles pedaços dos locais em que o tempo passou pela cidade e fazia as pessoas alheias a mim parecerem vivas. Os outros estavam sustentando o mundo enquanto nós vagavamos naquela parte do tempo na cidade. A multidão no calçadão, o asfalto ensolarado e o rio brilhando quente, são a maior poesia que uma pessoa que acabou de sair de parte da lida diária poderia ter antes de chegar em casa. 

Alguns olhares insinuavam loucura ou falta de algo importante para fazer, mas eram julgamentos de ilusão. Ao meio dia, as noticias importantes do telejornal falavam em guerra nuclear, aquecimento global e destruição do planeta. O rio à minha frente me perguntava de forma retórica o que era que eu tinha a ver com aquilo tudo enquanto ele fazia pose para a lente. As baratas sobreviverão a tudo isso. Haverá vida na terra. E dela a humanidade se levantará outra vez. Não é isso que ensinam nas escolas? 

Hoje eu saí, filmei e fotografei a cidade num dia que não teremos igual pelos próximos breves anos, e ela estava linda. No fundo ela também sabe que as coisas importantes da vida não passam no jornal. 


quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Outro adeus

(Imagem de Myriams-Fotos por Pixabay)


O tempo corre sempre alheio à nossa vontade. O amor e a violência também. Tudo o que não podemos controlar anestesia-nos da forma brutal que certas despedidas se vestem.
Chegamos ao último dia do mês, e os que ficaram em outras estações não conseguem ouvir o nosso adeus daqui.
Todo dia é dia de encontrar e dia de partir.

Ao céu, à liberdade, aos outros, à vida, ao infinito e à sinceridade, que nos esbarramos. Adeus! que tenhamos sido agraciados!

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Esquecimento

 

(Imagem: daqui)

Hoje, esquecer as coisas não é sinal de bondade. Agora, as cenas de seu abandono pesam em meu coração. Você no meio da rua, enquanto todos iam embora. Foi a primeira vez na vida que eu não quis ir para casa. Não sem você.
Não é hora de esquecer para que a bondade transpareça, hoje ela mora num sol de meio dia impossível de ignorar. E as pessoas machucam tanto as outras por motivos incontáveis. Há sempre um bom motivo para machucar alguém. Deve haver um lugar para pessoas boas no inferno. Eu sei que tem.

Você sempre volta para os que te abandonam. Os outros não entendem, mas eu sim. Eu sei o que é não ter para onde ir. Sei o significado real do "tanto faz" quando a escolha é sangrar e chorar ou sangrar e chorar, não necessariamente nessa ordem. Quando o sangue machuca o choro acode. Sangue e choro nunca mentem. Por que as pessoas não veem? Esquecer não é sinal de bondade. Esquecer é ser cumplice de tudo isso. Cumplice do império que se ergueu na força de nossas palavras ao deixarmos para lá. O silêncio é um alicerce de concreto para construir o bem ou o mal. Não era tempo de calar. Não é. 

Tudo pode se mover. Tudo podemos derrubar. Se você pudesse ver o que vi poderia confiar em mim. Se seus olhos se erguessem por um tempo, a luz do céu e o branco das nuvens penetrariam o seu coração. Ninguém aqui na terra é nosso dono. Nós é que damos as correntes que nos prendem.
Se você levantar a cabeça vai enxergar que até duros alicerces tremem e tombam quando voltamos a enxergar que sempre fomos livres.

O silêncio está ocultando tudo isso de você. Depois que aprendemos a ouvir a vida, as respostas sempre iluminam tudo. Lembre-se.

sábado, 30 de setembro de 2023

O Príncipe da casa ou outra juventude

(Foto de Victoria Borodinova no Pexels)

Quando o dia fica com aquela ressonância no silêncio dos inícios das tardes por causa da quietude da cidade depois que todo mundo chega em seus trabalhos, eu lembro dos tempos em que reinávamos juntos. 

Hoje sua esposa e seus filhos ficam felizes ao me ver, e seus rostos me trazem alegria, isso desde quando eu estava iniciando minha vida adulta, e você nem era assim tão mais velho. 

Eu ia para a sua casa aos fins de semana ou à quadra na pracinha com todo o restante da garotada do bairro. Às vezes só a galera do quarteirão já bastava para jogarmos até escurecer. Chinelos misturados na entrada e bicicletas encostadas em arvores e muretas, os vídeo games e os botões, você chegava com a solução para as brigas e mandava bem em todos os jogos.

Eu tinha uma meta explicita de um dia fazer parte da linha que você montava com os garotos mais velhos no futebol na pracinha. Ter participado um dia foi o meu auge como criança! Os pés cheios de calos e o lado do rosto roxo só assombravam nossas mães quando chegávamos em casa. Nós não pensávamos nisso por muito tempo.  As garotas se juntavam ao redor, e apesar de haver caras mais bonitos por perto, elas paravam para assistir a aglomeração. Aquela diversão atraia tudo, aquele bairro foi feito apenas para isso. Feito para todos nós. 

As brigas de nossa infância e juventude eram esquecidas assim que o sol se levantava. Nós contávamos os feitos por semanas, omitindo tudo o que pudesse nos envergonhar, sempre haviam testemunhas para isso. E você reinava, sem saber que o mundo ao redor havia sido feito para nós. Para todos nós. Nas conversas da empregada, e nos olhares de seus pais e irmãos, tudo dizia que ali era o seu lugar. A casa realmente tinha uma outra cor, como o rio ao redor e as nuvens no céu tem toda vez que olhamos para eles.

Talvez as crianças transformem o mundo ao redor da forma mais eficaz que só uma vida adulta pode nos fazer esquecer. Hoje olho para esses locais do passado me sentindo alguém que olha para antigas cidades cobertas pelas areias que o tempo trouxe, com uma certa dor por a geração atual não poder viver o que foi vivido ali. Por eles não poderem reinar onde um dia reinamos. Como é estranho ver que jogávamos bola na avenida que hoje mal conseguimos atravessar por conta de tanto carro!

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

No princípio sem fim


(Vídeo daqui)

A felicidade e o amor despertam saudades até do que está ao nosso lado. O nome correto dessa saudade seria temor de não tê-los mais, de não ouvir as vozes conhecidas que nos transmitem alento.  As pessoas nascem e morrem, isso acontece até com as estrelas. Essa trajetória parece não fazer sentido. Na verdade, isso parece tirar o sentido das coisas. É como se fossemos mover uma cortina que impede de vermos o que está à frente e percebêssemos que ela cobre um portão gigante de um peso imensurável, com ferrolhos cerrados e que é ele que impede à visão. 

No tempo de agora, estamos longe demais do principio para termos vivenciado o inicio de todas as coisas ao redor. O inicio sempre explica o fim antes de o fim existir. Mas hoje confiamos nas palavras dos que estavam lá e passaram por palavras - para os que nos passaram por palavras - a esperança que chegou até os nossos ouvidos em vozes que transmitem alento e que hoje temos maturidade para entender... No principio era a Palavra. No fim do fim será Ela também. 


segunda-feira, 31 de julho de 2023

Espera em canções


(Imagem: daqui)


Os seus pais se escondem no silêncio. Um mecanismo para evocar a sua procura que quase nunca dá certo. O silêncio é sempre palavra dúbia para quem vive no rush, no limiar entre o martelo e a parede. As palavras que desviam quase nunca são entendidas quando e como deveriam, seja para o bem ou para o mal. As palavras que desviam quase sempre são entendidas em sua plenitude muito tempo depois, quando o motivo já se evanesceu e a resposta já não terá sentido.  

Você pensa que pode haver algo errado contigo, que algo de muito grave foi feito e sua mente apagou criando um lapso para proteger seu consciente. Uma briga, uma palavra, as drogas o sexo... o silêncio nunca deixará saber. Seus velhos não se abalam com o que falam sobre você, sem perceber que a cartomante esqueceu de dizer que não prevê o futuro, mas profetiza esperando o alvo andar em caminhos sem luz para que o que ela disse possa se tornar real.

Você também luta em silêncio contra um adversário que surgiu por acidente. Um você que você não enxerga no espelho. Todos sabem e todos perceberam que ele também te refletia, mesmo sem você saber. Aquele Outro te libertou de todas essas coisas, por isso não há motivos para pensar mais a respeito. Nós também prevemos o futuro no silêncio. Porém nós, os filhos, não moramos nesse intervalo. 

Nenhum ser humano é fluente em silêncios. Não por muito tempo. Envolva-se com coisas que não solidifique pausas, e que as mantenham no lugar feito para elas estarem - que é sempre de passagem sem lugar para repousar. O canto e as canções são o que devem encontrar abrigo em seus braços nos corredores e cômodos dos lares em que vocês moram, nos céus em que vocês esperam morar. Nos céus que os aguardam em canções.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

O outro curso do rio


(imagem: daqui)

As vezes não entendo como me submeto a perder tempo com coisas que as pessoas dizem que são importantes para se ter sucesso, como diplomas, títulos e academias. Se tivesse a mente que tenho agora aos 17, 18, talvez passasse longe de tudo isso, embora hoje os use para outros fins. Acredito que seja preciso pagar esse pedágio por viver num meio onde a engrenagem exige uma determinada resposta para continuar a girar e não tirar tudo de nós numas das várias voltas que ela dá. 

Depois da certeza das coisas sólidas que importam, sejam físicas ou espirituais, não sobra muita gente para conversar sobre assuntos que nem o tempo nem a ferrugem destroem. Exigimos da vida do outro o que ele deve tirar para melhorar o mundo e escravizamos da nossa para o mesmo fim através de meios equivocados, não entendendo logo cedo a importância de ouvir as respostas que ressoam para nossos espíritos e nos acovardando, por acharmos ser tarde, tentar ou voltar do zero.

Os viajantes espaciais que perceberam de longe o nosso modo de perder tempo, e decidiram nunca entrar em contato para não sofrerem da mesma influência, até que tem razão.